10 pontos a considerar antes de começar uma publicação (de acordo com a FAO)

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) dispõe de uma ampla seção de publicações voltadas às áreas de alimentação, ambiente, mudança climática e outros temas relacionados. Uma produção constante de materiais deve obedecer a algumas diretrizes fundamentais – e foram essas que a organização divulgou ao lado de seu catálogo 2017, no último mês de junho. São “regrinhas” úteis ao planejamento de qualquer organização ou autor, que podem economizar vários tipos de dor de cabeça. Confira uma tradução livre:

1. Relevância
Qual será o conteúdo da publicação e como será estruturado? Ele irá atingir as reais necessidades do público-alvo? Qual será seu valor agregado?

2. Legibilidade e responsividade
Quem irá lê-la (em outras palavras, quem será o público-alvo e outras audiências potenciais)? Ela reflete as necessidades de evolução do tema tratado? Ou será apenas uma repetição atualizada, com conteúdo padronizado?

3. Autenticidade
Trará conteúdo original e identificado com os outros produtos da organização (ou dos parceiros)?

4. Clareza
Sua mensagem será clara? Trará em evidência os princípios da organização?

5. Consistência
Seu conteúdo e mensagem serão consistentes, tanto internamente quanto em relação a outras publicações da organização?

6. Engajamento
Possibilitará o engajamento dos usuários? Como eles poderão oferecer feedback? Como isso poderá melhorar a qualidade técnica de futuras publicações?

7. Design claro
Seu design e formato ajudarão a comunicar a mensagem? Terá um design amigável, que considera as características do público-alvo? O design considera as implicações de custo?

8. Custo de produção
Quando custará para produzi-la? Esse custo será apropriado para atingir a qualidade e o impacto desejados? Haverá fundos suficientes?

9. Disseminação
Como o público-alvo ficará sabendo sobre a publicação? Como e onde será disseminada? Quem será responsável por isso? Ela deve ser traduzida para outras línguas?

10. Avaliação
Como seu impacto será avaliado?

(Fonte: Ten Points to Consider Before Starting a Publication, FAO Publications, junho/2017)

O “Carma Ocidental” é campeão de audiência

Uma música para dançar na balada, apresentada por um homem vestido de macaco e farta em referências filosóficas e da cultura pop, tecendo uma crítica ao modo de vida ocidental. Parece uma combinação insólita, mas é a descrição de um dos maiores hits musicais do ano na Europa. A música Occidentali’s Karma, do italiano Francesco Gabbani, foi feita para “estourar” e conseguiu seu intento. Em apenas dois meses, ultrapassou a marca de 100 milhões de acessos no YouTube, foi a campeã do célebre Festival de San Remo e chegou às finais do Campeonato Eurovision, no qual faturou o prêmio adicional de mais votada pelos profissionais de imprensa.

A melodia fácil surpreenderá os ouvidos mais atentos com um numeroso acervo de citações que fazem uma análise sagaz do modus vivendi contemporâneo – tendo como mote a apropriação mercantilista de elementos da cultura oriental. De Shakespeare a Marilyn Monroe, a ironia surge já no nome da canção, que modifica a forma latina de Occidentalis Karma (“Carma Ocidental”) para a já tão familiar forma americanizada finalizada por apóstrofo.

Confira abaixo a tradução da letra original com links para a inspiração de cada trecho – e aproveite para ver o vídeo que virou febre para além dos debates sociológicos. 😉

Occidentali’s Karma

Ser ou dever ser,
A dúvida “Hamlética
Contemporânea como o homem do neolítico.
No seu cubículo 2×3, acomode-se
Intelectuais nos cafés
Internetólogos
Sócios honorários do grupo dos “selfistas” anônimos
A inteligência está démodé
Respostas fáceis
Dilemas inúteis.

AAA Procura-se* (procure, sim)
Estórias de gran finale
Espera-se (espere, sim)
De qualquer forma, Panta Rei
And singing in the rain

Lições de Nirvana
O Buda em fila indiana
Para todos uma hora de ar, de glória
A multidão grita um mantra
A revolução tropeça
O macaco nu baila
Occidentali’s Karma.

Chovem gotas de Chanel
Sobre corpos ascéticos
Ponha-se a salvo do odor dos seus iguais
Todos “tudólogos” com a web
Coca dos povos
Ópio dos pobres

AAA Procura-se (procure, sim)
Humanidade virtual
Sex appeal (sex appeal)
De qualquer forma, Panta Rei
And singing in the rain

Lições de Nirvana
O Buda em fila indiana
Para todos uma hora de ar, de glória
A multidão grita um mantra
A revolução tropeça
O macaco nu baila
Occidentali’s Karma.
Quando a vida se distrai, caem os homens
Occidentali’s Karma
O macaco se reergue
Namasté Alé

Lições de Nirvana
O Buda em fila indiana
Para todos uma hora de ar, de glória
A multidão grita um mantra
A revolução tropeça
O macaco nu baila
Occidentali’s Karma.

* “AAA Procura-se” é um modo comum de se redigirem anúncios na Itália, como forma de colocá-los em primeiro lugar em uma lista de classificados em ordem alfabética.

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O Céu Segundo os Índios

Muito antes de Fernão de Magalhães aparecer por aqui guiado pelas estrelas, os habitantes destas terras já direcionavam suas vidas pelos pontos luminosos do céu. Celebrações religiosas, épocas de plantio e colheita são apenas alguns dos propósitos dos estudos indígenas do firmamento. Para além da função prática, viam também no céu uma cópia de seu próprio mundo.

Em 1997, as obras da usina hidrelétrica de Salto Caxias, no Paraná, revelaram material inusitado. Encravadas na terra, havia gravuras indígenas em baixo-relevo que retratavam o movimento de corpos celestes, provavelmente utilizadas para caça, pesca e agricultura. A descoberta chamou a atenção de especialistas e remeteu a estudos realizados em solo brasileiro séculos antes. “Há grandes semelhanças entre o sistema astronômico utilizado hoje pelos guaranis do sul do Brasil e as medições dos tupinambás do Maranhão, descritas pelo missionário Claude d’Abbeville em 1612”, diz Germano Afonso, especialista em etnoastronomia e pesquisador da Universidade Federal do Paraná. “Isso ocorre apesar das diferenças lingüísticas, da distância geográfica e dos quase 400 anos que os separam no tempo.”

Claude d’Abbeville, monge capuchinho francês, esteve no Brasil no século 17 em missões de evangelização junto a aldeias indígenas do Maranhão. Seu relato está em Histoire de la Mission de Pères Capucins en l’Isle de Maragnan et Terres Circonvoisins, publicado em Paris em 1614. Considerada uma das mais importantes fontes de informações sobre a etnia tupi, a obra trazia uma novidade para a época: a relação de aproximadamente 30 estrelas e constelações utilizadas pelos índios para atividades de plantio, pesca, caça e rituais religiosos. Eles conheciam a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamavam-nos todos por seus nomes próprios, inventados por seus antepassados, descreve.

As semelhanças entre os conhecimentos dos índios coloniais e das aldeias atuais motivaram novas pesquisas junto a etnias indígenas de todo o País. “É possível que as tribos se utilizem desse conhecimento desde que deixaram de ser nômades, como forma de entender e utilizar as flutuações sazonais de clima para sua subsistência”, diz Afonso.

CÓPIA IMPERFEITA DO FIRMAMENTO

As atividades das tribos indígenas guiam-se, geralmente, por dois tipos principais de constelações. Há aquelas relacionadas ao clima, à fauna e à flora do lugar, conhecidas por toda a comunidade; e outras relacionadas aos espíritos indígenas, mais difíceis de visualizar e conhecidas, normalmente, apenas pelos pajés. No firmamento, eles encontram mais do que orientação sobre marés e estações do ano: vêem um retrato do mundo terrestre. Para os pajés, tudo o que existe no céu existe também na Terra. Assim, cada animal terrestre tem seu correspondente celeste. Isso explica o enorme número de constelações utilizadas. Enquanto a União Astronômica Internacional (UAI) registra um total de 88 constelações, distribuídas nos dois hemisférios terrestres, os indígenas utilizam mais de 100, formadas não só por grupos de estrelas, mas também por manchas escuras e nebulosas que compõem o céu.

MORADA DOS DEUSES

Na estrada esbranquiçada da Via Láctea, tribos encontram o principal ponto de referência para as medições celestes. Chamam-na Tapi’i rapé (Caminho da Anta), devido à posição das constelações que a formam. Se para medir fenômenos climáticos as referências são animais terrestres, quando se trata do sagrado a região recebe o nome de Morada dos Deuses. Ali, próxima à constelação do Cisne, está a mancha escura que simboliza Nhanderu, o deus maior guarani. Sentado em um banco, segurando o Sol e a Lua, ele aparece todos os anos para anunciar a primavera.

GRANDE NAÇÃO

O tronco étnico tupi, que se desdobra em diversas comunidades, é o que oferece mais dados para o estudo da astronomia entre os índios. Das várias famílias dessa etnia, a tupi-guarani é a mais extensa em número e na distribuição geográfica. Há grupos espalhados por todo o Brasil, assim como na Guiana Francesa, Argentina, Paraguai, Bolívia e Peru.

NO CAMINHO DAS ESTRELAS:
ALGUMAS DAS PRINCIPAIS CONSTELAÇÕES INDÍGENAS

Algumas constelações observadas pelos índios guaranis estão agrupadas em conjuntos maiores de estrelas. Para acompanhar o clima e o tempo, por exemplo, observam a Ema e o Homem Velho, duas das principais constelações do céu guarani. Um pouco mais sobre elas:

A EMA

08(10)

Quando surge ao leste no anoitecer, na segunda quinzena de junho, a Ema indica o início do inverno para os índios do sul do Brasil e o começo da estação seca para os do norte. É limitada pela constelação de Escorpião e pelo Cruzeiro do Sul ou Curuxu, que, segundo o mito guarani, segura a cabeça da ave, garantindo a vida na Terra – caso ela se solte, beberá toda a água do nosso planeta. Os tupis-guaranis utilizam o Curuxu para determinar os pontos cardeais, assim como a duração das noites e as estações do ano.

O HOMEM VELHO

Conta o mito guarani que havia um homem casado com uma mulher muito mais jovem do que ele. A esposa ficou interessada pelo cunhado e, para mudar de par, matou o marido, cortando-lhe antes a perna na altura do joelho direito. Os deuses, penalizados, transformaram o homem em constelação. Na segunda quinzena de dezembro o Homem Velho surge ao leste. Assinala o início do verão para os índios do sul e o começo das chuvas para os do norte. Formada pelas constelações de Touro e de Órion, contém três outras constelações indígenas: Eixu (as Plêiades, cujo nome indígena significa “vespeiro”), Tapi’i rainhykã (as Hyades) e Joykexo (o Cinturão de Órion). Para os tupinambás, o ano começa na primeira quinzena de junho, quando Eixu surge no lado oeste, antes do nascer do sol, trazendo consigo a estação das chuvas.

SOL PARA O CORPO E constelacaohomemvelhoPARA O ESPÍRITO

A vida social e religiosa dos tupis-guaranis é guiada, principalmente, pela presença do Sol. O astro tem um nome espiritual, Nhamandu, diferente do termo usado para denominá-lo no cotidiano, Kuaray. O próprio calendário guarani é ligado à trajetória solar, dividido em tempo novo (primavera e verão) e tempo velho (outono e inverno). O meio-dia solar, os pontos cardeais e as estações do ano são determinados de acordo com um relógio solar vertical, a exemplo de como faziam povos no Egito, China, Grécia e em diversas outras partes do mundo. A Lua tem também papel importante. Segundo Claude d’Abbeville, os tupinambás atribuem a ela o fluxo e o refluxo do mar e distinguem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na lua nova. O movimento do astro influi na caça, nas espécies de peixes disponíveis para pesca, no plantio e no corte de madeira.

NOME ESCOLHIDO NAS ESTRELAS

Os índios se guiam pelas estrelas também para prever a gestação das crianças da tribo. Com base nas constelações, calculam os nascimentos para a primavera, quando o clima é mais quente e estável. Na etnia guarani, o ritual do batismo (nimongarai ou nheemongarai) obedece à trajetória dos astros. A cerimônia acontece após a colheita do milho, na época dos tempos novos, que coincidem com os temporais do mês de janeiro. O nome da criança, que atestará sua origem, virá de uma das cinco regiões celestes: zênite, norte, sul, leste ou oeste.

Saiba mais sobre os céus indígenas aqui.

Com base em texto da autora publicado no Almanaque Brasil de Cultura Popular, maio de 2007.

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8 de Março: para não dizer que não falamos de flores

“Dizem que a mídia só faz o que o público pede. Não, eles fazem o que as empresas e os anunciantes querem e fazem parecer que a culpa é nossa.”

(Jennifer Pozner, no documentário Mulheres na Mídia, 2014)

Todas as questões envolvendo a condição social da mulher dariam farto material para muitos livros e tratados. Ainda assim, há quem diga que discussões envolvendo feminismo, questões de gênero ou direitos da mulher seriam já ultrapassadas, pertencentes a uma época quase remota e que o espaço da mulher nos dias de hoje – ao menos nas sociedades “ocidentais” – já estaria equiparado ao do gênero masculino.

Esse discurso é abraçado até mesmo por uma parcela de mulheres que diz não “ver sentido” nos movimentos feministas atuais. Talvez elas nunca tenham vivenciado diretamente a privação da liberdade de fazer escolhas pessoais sem interferências externas, do seu acesso à educação e a seus direitos fundamentais. Porém, não se pode fechar os olhos para o imenso contingente de mulheres que ainda sofrem de forma violenta o cerceamento de seus direitos, que são obrigadas a cumprirem papéis que não escolheram ou para os quais não estão preparadas, que sofrem agressões físicas e morais, que são condenadas a diversas penas pelo simples fato de serem mulheres.

As provas desta mentalidade estão presentes tanto em situações de violência extrema, encontradas em qualquer edição diária de jornal, quanto nas pequenas “sutilezas” do cotidiano – como os milhares de assédios considerados “inofensivos” sofridos por mulheres de todas as classes sociais, culturas e perfis ao sair às ruas todos os dias. Como os vagões femininos nos metrôs das capitais, que deixam claro que a primeira resposta da sociedade a um quadro de violência de gênero é o isolamento da vítima ao invés da punição do agressor. Como a existência de Delegacias da Mulher, uma tentativa (muitas vezes sem sucesso) de evitar que vítimas de abuso sejam humilhadas e criminalizadas pelas próprias forças policiais que as deveriam defender. Como o fato de uma lei específica contra a mortalidade de mulheres por agressões domésticas, a Lei Maria da Penha, ter entrado em vigor somente em 2006, inspirada no caso extremo (mas, infelizmente, longe de ser inédito) da biofarmacêutica brasileira vítima de violência e de duas tentativas de assassinado por parte do marido, que a deixariam paraplégica e renderiam a ele apenas dois anos de prisão em regime fechado.

Caso todas essas situações não sejam suficientes para mostrar a necessidade de se discutir, ainda hoje, o empoderamento da mulher na sociedade, existem números que falam por si: no Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já o Mapa da Violência sobre homicídios entre o público feminino mostra que, embora o número anual de homicídios de mulheres brancas tenha caído 9,8% entre 2003 e 2013, os assassinatos de mulheres negras cresceram 54%, passando de 1.864 para 2.875. Do total de feminicídios registrados em 2013, 33,2% dos homicidas (ou seja, um terço deles) eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas.

Como vemos, os avanços recentes da luta pela igualdade de gênero não foram ainda suficientes para mudar uma cultura de violência arraigada há séculos em nossa sociedade, expressa por novo crescimento nos casos de agressões e mortes, especialmente entre as mulheres negras. Além desses, há muitos outros indicadores que denotam a urgência da discussão a respeito do assunto, indo desde a simples distribuição de tarefas domésticas até desníveis salariais no mercado profissional.

Amanhã, 8 de Março, é um dia de reflexão e luta para que essas questões continuem sendo discutidas até que todas as mulheres tenham a garantia de que sua condição feminina não implique em uma série de riscos sociais a que os homens não estão expostos. Como em todos os anos, muitas ações de conscientização estão sendo preparadas ao redor do mundo – sendo a Greve Internacional de Mulheres uma das mais abrangentes. Procure se informar e participar de alguma forma, diretamente ou expressando seu apoio. O modo pelo qual tratamos o outro (ou a outra), ainda que não pertençamos ao mesmo grupo populacional ou de gênero, diz muito sobre nós mesmos e sobre como escolhemos construir uma sociedade. Assegurar o espaço de afirmação, de direitos e de vida a uma parcela decisiva da população mundial é fundamental para que possamos mudar os rumos e história de todos. Vamos pensar – e agir – sobre isso.

Dica de documentário: separe 57 minutos do seu tempo para assistir ao ótimo  Mulheres na Mídia (2014), que expõe os mecanismos de exploração da imagem feminina com fins mercadológicos e seus efeitos nocivos sobre as mulheres desde a infância – o que se reflete em toda a sociedade. Ótima matéria-prima para reflexões nesta semana e na vida.

(Utilizando dados contidos no prefácio escrito pela autora para o livro “Cara de uma, espelho da outra – A construção da imagem da mulher pelas jornalistas”, de Marina di Fiore Segre, Fernanda Cabrera e Vanessa Bertolini)

(Crédito da Imagem: Maria Objetiva, Marcha das Vadias de Belo Horizonte, 2013)

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O Carnaval da Griô

Carnaval é uma boa época para lembrar (e prestigiar) as coisas mais bacanas da nossa cultura. Por isso, quero relembrar aqui uma das experiências mais interessantes que já vivi como jornalista: a entrevista com Raquel Trindade, maravilhosa griô (nome dado aos guardiões do conhecimento na cultura negra) que há mais de 50 anos desenvolve um trabalho intenso de valorização e difusão da herança africana no Brasil. Um papo tranquilo na sala de sua casa, em Embu das Artes/SP, foi como ver um mundo se descortinar. A poucos metros dali, os grupos de dança do Teatro coordenado por ela mantinham (e mantêm) vivos os ritmos e as músicas trazidos da África — maracatu, coco, jongo, samba de roda, bumba meu boi e lundu. Em ações culturais na comunidade ou procurando vencer o desafio de inserir o tema da cultura negra em ambiente escolar, ela sempre levou a sério as palavras de seu pai, Solano Trindade, em um de seus últimos poemas:

Estou conservado no ritmo do meu povo. Me tornei cantiga determinadamente e nunca terei tempo para morrer”.

A entrevista já tem alguns anos, mas Raquel segue ativa em seu trabalho de manter viva e atual a cultura negra, dentro e fora do Carnaval. Vale a pena dar uma lida no que ela tinha — e tem — a dizer. 😉

Nasci em Pernambuco, meu pai também. Moramos em muitos lugares antes de vir aqui ao Embu. Passamos por Rio de Janeiro, São Paulo, com meu pai sempre atuando na militância política. No Rio de Janeiro, em 1950, ele criou, ao lado de minha mãe Maria Margarida e do sociólogo Edison Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro. E depois do falecimento dele, em 1974, criei o Teatro Popular Solano Trindade, que foi registrado formalmente em 1980, já no centro de Embu.

No teatro, que não tinha ainda um prédio, mas se caracterizava por um movimento cultural, passei a ensinar as danças que meus pais tinham me ensinado: maracatu, coco, lundu, jongo, samba-lenço rural paulista, jongo mineiro, jongo fluminense, bumba meu boi de pernambuco, guerreiros de Alagoas. Todas as danças que trazem a herança do folclore nacional. Alguns anos depois, nosso grupo de dança ganhou um terreno da Prefeitura e construímos um barracão para ensaiarmos. Depois conseguimos uma verba do Estado, enviada por meio da Prefeitura da cidade, e foi então construído o primeiro prédio do teatro. De lá saíram várias bandas. Em 2010, o teatro foi restaurado e ampliado, continuando a abrigar todas as aulas que já eram dadas — de percussão, hip-hop, capoeira angola, danças brasileiras, construção e pesquisa de instrumentos africanos e afro-brasileiros.

Tudo isso é continuação do trabalho de minha família, desde meus avós no Recife. Meu avô era velho de pastoril, minha avó fazia lapinha no Natal, minha outra avó por parte de mãe dançava maracatu. Minha mãe era evangélica, terapeuta ocupacional — mas foi ela quem me ensinou todas as danças, com exceção do candomblé, que eu vim a conhecer depois. Meu pai era marxista, comunista, e minha mãe presbiteriana. Eu participo do candomblé há mais de 40 anos. Tenho uma filha que é evangélica batista e outra budista. Eu e meu filho Victor somos do candomblé e minha nora é católica. E todos nos damos bem, um respeita o espaço do outro.

Tradição nas novas gerações

Toda a comunidade frequenta nossos cursos, que são gratuitos. A cultura que difundimos é negra, mas voltada para todas as etnias. Temos descendentes de japoneses, brancos, índios e negros — dos dez aos setenta anos. Vêm muitos estrangeiros também, para ter aulas de percussão. Desde 2009, somos Ponto de Cultura, reconhecido pelo Ministério da Cultura.

Há cinco anos, fundamos também aqui o bloco do Kambinda. Nele, expresso um pouco da minha longa vivência no samba. Fui vice-campeã da Escola de Samba Vai-Vai duas vezes — a primeira com o enredo Solano Trindade — o moleque do Recife, com versos de Geraldo Filme, depois com José Maurício, músico do Brasil Colonial. Depois fui convidada pelo sambista Candeia para fazer o Carnaval da Escola de Samba Quilombo, criada por ele no Rio de Janeiro em 1978. Fiz o enredo Ao povo em forma de arte, com base no lema de meu pai: Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte. Esse samba foi campeão com Wilson Moreira e Nei Lopes.

Depois disso, fiz vários sambas-enredo para escolas até que, junto com o Maninho da Cuíca, primeiro sambista do Embu, decidimos criar um bloco aqui na casa. Os jovens, as novas gerações, têm muito interesse pela cultura negra. Só aqui no Teatro, vemos surgir várias manifestações culturais novas. Foi organizado um grupo, Capulanas, que mistura dança e poesia. Da mesma forma, os meninos do hip-hop desenvolvem seu próprio estilo. Claro que o hip-hop não é brasileiro, mas é um ritmo que já se abrasileirou. O que é o MC? É um repentista. Meu neto Zinho da Trindade é um repentista que coloca isso, modernamente, no hip-hop. Aqui cultuamos muito as tradições, mas também temos os olhos abertos para as coisas novas de boa qualidade. E estes que citei conseguem fazer com qualidade as duas coisas — o novo e o antigo.

No Teatro atendemos a escolas, universidades, jornalistas. As pessoas vão à Secretaria da Cultura da Prefeitura da cidade, para saber a história do Embu, e eles pedem que venham conversar comigo. Escrevi em 2003 o livro Embu — Aldeia de M’Boy, sobre a história da cidade, pela Editora Noovha América, e finalizei outro pela mesma editora, com o apoio da Secretaria da Educação — falando sobre a história, a vida cultural, os artistas do Embu.

Posso dizer que, de fato, ajudamos a construir a história cultural do Embu. Depois de orarmos no Recife e no Rio de Janeiro, passamos uma temporada na Europa com o grupo de dança de meu pai. Dançamos por toda a Polônia, toda a antiga Tchecoslováquia. E, quando voltamos ao Brasil, organizamos um espetáculo em São Paulo. Aqui já estavam os escultores Tadakiyo Sakai, Cássio M’Boi, Claudionor Assis Dias. Foi quando o Sakai disse ao Assis que ele, sendo negro e escultor, deveria conhecer Solano Trindade, para entender mais sobre a cultura negra e aplicá-la como temática em seu trabalho. Então Assis foi assistir a um espetáculo de nosso grupo e gostou muito, participando inclusive. Fez amizade com meu pai e trouxe a nós todos para conhecer o Embu.

Isso aconteceu em 1961. E o Embu, naquela época, era ainda mais bonito do que é hoje. O rio Embu-mirim tomava o terreno quase todo com água mineral pura. A região era cheia de árvores, não havia a maioria das casas de hoje. A cidade era formada praticamente pelo centro colonial e pela cachoeira, o rio e a lagoa limpos. Nós adoramos o lugar e fomos todos para o barraco do Assis. Ele e a esposa, Imaculada, tinham várias crianças. Nós dormíamos todos pelo chão e fazíamos festas culturais, religiosas, que duravam três dias ao redor da lagoa. Não fomos mais embora.

O movimento cultural que existia, ao lado dos artistas que já estavam aqui, foi atraindo cada vez mais gente para o Embu. Logo foram criados os salões de arte. Mais tarde, quando foi organizada a feira da Praça da República, em São Paulo, comecei a ir para lá também. E o Assis, com medo de que o movimento na Praça da República enfraquecesse as atividades no Embu, criou a feira da Praça do Embu. Começaram então a vir para cá todos os artistas. Nessa época não havia Secretaria de Turismo, iniciativa formal, nada disso. Nós criamos a Secretaria de Turismo.

Cultura que é de todos

Percebemos o aumento de interesse pela cultura negra desde a década de 1950, quando morávamos no Rio de Janeiro. Na época em que eu era menina, já havia o Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento. Havia também a Orquestra Afro-brasileira, criada pelo maestro Abigail Moura, e o balé Afro, de Mercedes Batista, a primeira bailarina negra do Teatro Municipal. Meu pai e minha mãe ajudaram a criar o teatro folclórico do escritor e produtor Aroldo Costa, logo antes de criarem o Teatro Popular Brasileiro. Ou seja, a luta vem de muito tempo, apesar da discriminação muito grande, inclusive da mídia.

Na verdade, sempre recebemos bom apoio dos jornais impressos. Já as emissoras de televisão abrem um pouco menos de espaço, com exceção da TV Futura e da TV Cultura, além da TV SESC. Temos um bom relacionamento com a Rede SESC: costumamos nos apresentar em praticamente todas as unidades de São Paulo. Aos poucos, vemos o espaço se abrindo. Mas ainda não é o ideal — ainda se toca muita música estrangeira, se dá muito destaque para o que vem de fora do país, e pouco para a nossa cultura propriamente.

Mesmo entre as escolas o interesse vem crescendo, inclusive anterior à lei que determinou o ensino da história negra em sala de aula. Em 1987, por exemplo, fui convidada por Antônio Nóbrega para dar aulas sobre dança e artes cênicas na Unicamp, onde trabalhei de 1987 a 1992. Comecei a lecionar como técnica didata e depois passei a professora. Ali percebi que, dentro do curso de graduação em artes cênicas, só havia um negro. Então, organizamos na Unicamp um curso de extensão abordando o folclore e a cultura negra. Tivemos grupos de alunos da comunidade de Campinas e de outras graduações. Essa reunião de interessados deu origem ao grupo de dança e resgate da cultura Urucungos, Puítas e Quijêngues, que existe até hoje — de nome inspirado em instrumentos bantos que foram trazidos pelos escravos para São Paulo. O Urucungo equivale ao berimbau, as puítas, às cuícas, e os quijêngues, aos tambores.

Apesar do sucesso do curso, porém, eu sentia certa discriminação do meio acadêmico por não ter nível universitário. Na época, estava tratando um câncer e me separando de meu último marido. Foram questões demais para administrar. Decidi então pedir demissão da Universidade e voltar para o Embu. Desde então, mantenho o trabalho aqui e tenho dado também muitas palestras.

A própria formação dos educadores é uma necessidade que se reforça com a entrada do tema da cultura negra nas escolas. Por isso, fizemos uma proposta de curso para a formação de professores, abordando a África Pré-colonial, os sistemas de escrita que já existiam, a primeira operação de cérebro, realizada ainda no Egito antigo. Os costumes e fatos importantes ligados à história negra e as personalidades brasileiras — grandes líderes, escritores, poetas, pintores e escultores negros. Também as religiões que vieram com eles, a culinária e, por meio de atividades práticas, as danças. Como sempre existiu muito preconceito, não houve até hoje preocupação em saber a história do negro. Nas escolas, o assunto sempre esteve restrito à escravidão. E sempre se falou da Lei Áurea como se tivesse sido dada de presente para nós, quando na verdade houve muita luta anterior.

Tudo isso faz com que as pessoas se interessem pouco pela história do negro. Eu, por exemplo, sempre tentei trabalhar junto ao sistema formal de educação, mas a concretização dos projetos esbarra no fato de eu não ter nível universitário. Acontece que, como eu, a maioria dos griôs não tem nível universitário. Com isso, não se dá o valor que eles têm realmente, que é a sabedoria popular. Minha sorte foi que tive um pai fantástico, que era autodidata, pesquisava muito e me transmitiu muita coisa. Por meio dele, aprendi muito e tive contato com pessoas que conheciam profundamente a cultura negra: Edison Carneiro, Roger Bastide. Desde então, tudo que sei procuro transmitir aos outros, seja pela teoria, seja pela dança e pela música. E estou aprendendo ainda, com todos os que passam por aqui. Ao lidar com cultura, a gente aprende todos os dias.

Conteúdo adaptado de texto original publicado na revista Comunicação & Educação em maio de 2011.

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Escrevendo uma tese: como começar (e continuar)

E outras coisas a saber sobre a vida acadêmica

Chegou o momento em que, como consequência natural do seu percurso de estudos (ou de trabalho), como investimento na carreira ou por simples vontade de aprofundar conhecimentos, você considerou uma boa ideia fazer um curso de pós-graduação. Ou então está cara a cara com um dos primeiros desafios da sua vida universitária, o trabalho de conclusão de curso da graduação. E teve o primeiro contato com as famosas regras de formatação estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ou, simplesmente, “as normas da ABNT”.

Motivo de dor de cabeça para muitos estudantes (e pesquisadores), esse conjunto de regras surgiu exatamente para eliminar conflitos na documentação de trabalhos científicos, padronizando termos e estruturas e facilitando a consulta posterior às pesquisas. Surgida na década de 1940, a ABNT logo passou a integrar o TMB (Technical Management Board), ao lado de instituições de outros 12 países designadas para organizar o desempenho de atividades e trabalhos técnicos.

Por tudo isso, apesar das adaptações iniciais, escrever sua pesquisa de acordo com as normas da ABNT pode garantir o acesso de outras pessoas à sua pesquisa no futuro, assegurando a documentação e uso de seus resultados tanto por você mesmo, como por outros pesquisadores. Então, respire fundo e comecemos…

Uma busca na internet trará várias páginas com instruções detalhadas de como estruturar seu trabalho (esta, por exemplo). Por isso, não irei reproduzi-las aqui – ao invés disso, comentarei as principais dúvidas e desafios trazidos pelos estudantes que buscam revisão profissional para suas monografias. Elas podem ajudar em alguns passos do caminho. 😉

Procurando referências:

Como já vimos, a internet é generosa em fontes de consulta para trabalhos acadêmicos – tanto para as regras, como para o conteúdo em si. E aqui chegamos à primeira dica, ou melhor, a um importante conselho: por mais que seu tempo seja curto e seus compromissos muitos, não copie integralmente trechos de outros trabalhos ou páginas da web. Esta “solução” pode colocar a perder todos os meses e anos de sua dedicação acadêmica, além de sua reputação como pesquisador (e não só). Quando utilizar informações de outrxs autorxs, nunca deixe de citar corretamente a fonte, e, em caso de citação literal, coloque sempre a frase ou trecho entre aspas, de acordo com as regras de formatação. Use a facilidade de acesso à informação a seu favor, enriquecendo sua pesquisa!

Já sobre a normatização do trabalho em si, você poderá encontrar tutoriais, esquemas gráficos e até programas que prometem formatar o trabalho automaticamente. No entanto, qualquer que seja o “apoio” escolhido, é importante confirmar se as regras “gerais” se aplicam 100% ao seu caso – pois é comum que as escolas, universidade e até professores estabeleçam seu “conjunto próprio” de normativas, adaptando as normas gerais ou usando como referência sistemas internacionais, como o da APA. Muitos publicam documentos complementares com suas regras – procure na sua escola se existe algo do tipo.

Começando a escrever…

É comum a dúvida sobre como deve ser um texto acadêmico – se mais formal, “literário” ou conceitual. A melhor recomendação, especialmente para quem está iniciando a vida acadêmica, é privilegiar a clareza e objetividade. Algumas regras são fundamentais: seu texto deve ser correto do ponto de vista gramatical e ortográfico, evitar gírias e expressões excessivamente coloquiais, além de seguir uma coerência de estilo. Mas não tente “criar” um perfil de redação diferente do seu. Ao invés disso, para tornar o texto mais rico, utilize exemplos, traga os conceitos para perto da realidade de sua área, inclua referências e autores diversos na pesquisa.

A melhor forma de aprimorar sua capacidade de redação, dentro ou fora do universo acadêmico, é através da leitura: com a prática, seu repertório linguístico se beneficiará diretamente da sua experiência como leitor e isso se refletirá cada vez mais em sua escrita. Se tiver dúvidas, lembre-se que uma linguagem clara irá contribuir para o entendimento de sua tese e para a defesa diante da banca depois. E claro, nunca dispense uma revisão minuciosa no final, seja sua ou de alguém da sua confiança.

E por falar em banca, escreva também nesse momento! Além da apresentação que você preparará com antecedência, tenha à mão uma caneta e um bloco de anotações para tomar nota das observações que os professores farão. Com atenção, ouça o que eles têm a dizer e anote os pontos principais de cada um, para responder por tópicos no momento da réplica. Além de evitar esquecimentos, o simples ato de anotar ajudará a organizar sua mente para discutir em seguida as questões levantadas.

Por fim, seguem algumas definições que fazem parte do mundo acadêmico, e que fazem parte dos primeiros passos de uma carreira universitária. Boa sorte e… keep going!

Pós-graduação, mestrado, doutorado, MBA…

No Brasil, todos os cursos realizados por profissionais já graduados são chamados de “pós-graduação”. Elas se dividem em lato sensu (do latim “em senso amplo”) – especializações e MBA’s – e stricto sensu, os mestrados e doutorados. As pós-graduações lato sensu são, normalmente, de menor duração e voltadas a profissionais que querem se aprimorar para o mercado de trabalho. Já as stricto sensu são mais voltadas à pesquisa e a quem pretende se dedicar ao ensino e à carreira acadêmica.

Currículo Lattes

O “currículo lattes” é o currículo constante da plataforma de mesmo nome, batizada assim em homenagem ao físico brasileiro César Lattes – destaque mundial na área de física atômica e um dos idealizadores do CNPQ. A Plataforma Lattes é a principal fonte de referência da produção acadêmica de alunos, pesquisadores e professores brasileiros. Por isso, é uma boa ideia (sendo inclusive obrigatório para alguns cursos) incluir seu currículo ali.

Qualis

Sistema mantido pela CAPES, por meio do qual são avaliadas as principais publicações científicas nacionais e internacionais – especialmente aquelas ligadas à produção dos cursos de pós-graduação. Embora seus critérios sejam alvo constante de discussão, é um índice importante para quem pretende começar a publicar artigos acadêmicos que deem relevância à sua pesquisa. A consulta à plataforma de periódicos, assim como mais detalhes sobre o programa, podem ser acessados aqui.

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‘Fake news’ e a indústria do engano

Fake news, pós-verdade, robôs, trolls… esses termos fazem parte de um “admirável mundo novo” que nos invade a partir das telas que nos circundam, influenciando de forma definitiva a maneira como recebemos e interpretamos os fatos. A discussão sobre veracidade, parcialidade e resposta da audiência parece ser infindável – mas será que é tão nova assim?

O texto abaixo, tradução livre (com grifos meus) de um artigo da BBC, mostra como a “indústria” do engano não é uma novidade que surgiu com a internet. Aliás, parece ter nascido com a espécie humana – ganhando novas potencialidades com os instrumentos desenvolvidos ao longo dos tempos. É o que mostra uma pesquisa feita bem antes da popularização da web

O homem que estuda a propagação da ignorância

Como pessoas ou empresas com interesses privados espalham a ignorância e ofuscam o conhecimento? Georgina Kenyon descobriu que há um termo que define esse fenômeno.

Por Georgina Kenyon

Em 1979, um memorando secreto da indústria do tabaco foi levado a público. Intitulado Proposta sobre Fumo e Saúde e escrito uma década antes pela empresa de tabaco Brown&Williamson, ele revelou muitas das táticas empregadas pela indústria do tabaco no combate às “forças anticigarro”.

Em um dos trechos mais contundentes do documento, há uma análise sobre como comercializar cigarros para o público em geral: “A dúvida é nosso produto, pois ela é o melhor meio de competir com o ‘corpo de fato’ que existe na mente do público em geral. É também uma forma de estabelecer controvérsia.”

Essa revelação despertou o interesse de Robert Proctor, historiador de ciência da Universidade de Stanford, que começou a investigar as práticas adotadas pelas empresas de tabaco para espalhar confusão a respeito do risco de câncer pelo fumo.

Proctor descobriu que a indústria de cigarros não queria que os consumidores soubessem dos danos causados por seu produto, gastando bilhões para esconder os fatos sobre os efeitos do tabagismo sobre a saúde. Essa busca levou-o a criar uma palavra para o estudo da propagação deliberada da ignorância: a agnotologia.

O termo vem da união de agnosis, palavra grega neoclássica para ignorância ou “não saber”, e ontologia, ramo da metafísica que trata da natureza do ser. Agnotologia é o estudo de atos intencionais que visam espalhar confusão e engano, geralmente para vender um produto ou obter vantagens.

“Eu estava pesquisando como as indústrias poderosas poderiam promover a ignorância para vender seus produtos. Ignorância é poder… e a agnotologia é sobre a criação deliberada de ignorância. Ao olhar para a agnotologia, descobri o mundo secreto da ciência classificada, e achei que os historiadores deveriam prestar mais atenção a isso”.

O memorando de 1969 e as táticas usadas pela indústria do tabaco tornaram-se um exemplo perfeito de agnotologia, diz Proctor. “A ignorância não é apenas o que ainda não é conhecido, mas é também uma manobra política, uma criação deliberada de agentes poderosos que querem que você ‘não saiba’.”

Para auxiliá-lo em sua pesquisa, Proctor contou com a ajuda do linguista Iain Boal, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Juntos, eles criaram o termo em 1995, embora grande parte da análise de Proctor do fenômeno tivesse ocorrido nas décadas anteriores.

Ideia de equilíbrio

A agnotologia é tão importante hoje como era quando Proctor estudou o encobrimento de fatos sobre câncer e tabagismo pela indústria do tabaco. Com propósitos políticos, por exemplo, oponentes semearam por muitos meses a dúvida sobre a nacionalidade do então presidente Barack Obama, até que ele revelou sua certidão de nascimento em 2011. Em outro caso, comentaristas políticos na Austrália tentaram incentivar o pânico comparando a classificação de crédito do país com a da Grécia, apesar de haver informações públicas amplamente disponíveis de agências de classificação mostrando que as duas economias são bastante diferentes.

Proctor explica que a ignorância pode, muitas vezes, ser propagada sob o disfarce de um debate equilibrado. Por exemplo, a ideia comum de que sempre haverá duas visões opostas nem sempre resulta em uma conclusão racional. Ela esteve por trás da forma como as empresas de tabaco usaram a ciência para fazer seus produtos parecerem inofensivos, e é usada hoje por negacionistas da mudança climática para argumentar contra as evidências científicas.

“Essa ‘ideia de equilíbrio’ permitiu que os homens da indústria do cigarro, ou atualmente os negacionistas do clima, alegassem que há dois lados em qualquer história, que ‘há controvérsias entre especialistas’ – criando uma falsa imagem da verdade, daí a ignorância.”

Por exemplo, diz Proctor, muitos dos estudos que ligam carcinógenos ao tabaco foram conduzidos inicialmente em camundongos – ao que a indústria de tabaco respondeu dizendo que estudos em camundongos não significavam que as pessoas estivessem em risco, apesar dos resultados de saúde adversos em muitos fumantes.

Uma nova era de ignorância

“Vivemos em um mundo de ignorância radical – e o mais incrível é que qualquer tipo de verdade compete com o barulho”, diz Proctor. “Mesmo que o conhecimento seja ‘acessível’, não significa que seja acessado.”

“Em relação a muitas coisas, o conhecimento é algo trivial – como, por exemplo, o ponto de ebulição do mercúrio – mas em questões mais amplas, de importância política e filosófica, o conhecimento das pessoas vem frequentemente da fé, da tradição ou da propaganda, mais do que de qualquer outra fonte“.

Proctor descobriu que a ignorância se espalha, em primeiro lugar, quando um grande número de pessoas deixa de entender um conceito ou fato e, em segundo lugar, quando grupos com interesses específicos (como uma empresa comercial ou um grupo político) então trabalham duro para criar confusão sobre a questão. No caso da ignorância sobre o tabaco e as mudanças climáticas, uma sociedade cientificamente analfabeta provavelmente será mais suscetível às táticas usadas por aqueles que desejam confundir e nublar a verdade.

Considere a mudança climática como um exemplo. “A luta não é apenas sobre a existência da mudança climática, é sobre se Deus criou a Terra para que possamos explorá-la, se o governo tem o direito de regulamentar a indústria, se os ambientalistas devem ter autoridade e assim por diante. Não é apenas sobre os fatos, é sobre o que se imagina que venha deles ou que contribua para eles”, diz Proctor.

“Fazendo” nossas próprias cabeças

Outro estudioso da ignorância é David Dunning, da Universidade de Cornell. Dunning adverte que a internet está ajudando a propagar a ignorância. “É um lugar onde todos têm a chance de ser seus próprios especialistas”, diz ele, “o que os torna presas de poderosos interesses à espreita para espalhar deliberadamente ignorância”.

“Enquanto algumas pessoas inteligentes se beneficiam de todas as informações que, agora, estão a apenas um clique de distância, muitas outras serão induzidas a um falso senso de especialização. Minha preocupação não é que estejamos perdendo a capacidade de ‘formar’ a nossa própria mente, mas que esteja se tornando muito fácil fazê-lo. Devemos nos consultar com os outros muito mais do que imaginamos. As outras pessoas podem ser imperfeitas também, mas suas opiniões contribuem muito para corrigir nossas próprias imperfeições, assim como nosso conhecimento imperfeito ajuda a corrigir seus erros“, adverte Dunning.

Dunning e Proctor alertam para o fato de que a propagação voluntária da ignorância correu desenfreada em todas as primárias presidenciais dos EUA, em ambos os lados do espectro político. “Donald Trump é o exemplo atual mais óbvio nos EUA, sugerindo soluções fáceis para os seguidores, muitas delas inviáveis ou inconstitucionais”, diz Dunning.

Assim, embora a agnotologia tenha tido suas origens no auge da indústria do tabaco, hoje a necessidade de uma palavra para o estudo da ignorância humana é mais forte do que nunca.

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A educação, o π e as bruxas

É curioso ter, entre os primeiros escritos de um blog sobre comunicação & afins, um texto sobre… matemática. Mas o post publicado na revista Hacker Noon (do qual fiz a tradução abaixo) chamou minha atenção já a partir do título, por resumir um conceito no qual acredito profundamente: a importância da visão sistêmica na educação (e por tabela, na comunicação) para a compreensão do que nos cerca. A tendência a enxergar e interpretar o mundo em “compartimentos estanques” (processos políticos e sociais “separados” do ambiente, leis da física separadas do cotidiano, a saúde da mente isolada da saúde do corpo e assim por diante), reinante deste os tempos da revolução industrial, já mostrou fazer mais mal do que bem à construção de uma sociedade que possa se sustentar. Por isso é importante falar sobre a união de saberes, seja na educação, seja na comunicação ou na vida.

Este é um assunto amplo que renderia mais e mais artigos por aqui. Por hora, segue o texto com alguns grifos meus… e para quem quiser fazer um mergulho ainda mais fundo na relação inseparável entre ciência, organização social e história, recomendo conhecer também a trajetória da filósofa (e matemática) Hipátia, uma das figuras femininas mais importantes da Antiguidade. Sua história é contada no filme Alexandria, que dá o que pensar sobre vários temas – e que tem, como uma de suas mais belas e simbólicas cenas, exatamente uma descoberta científica. Nada mal para uma narrativa “de humanas”. 😉

A Matemática sem história não tem alma

(ou o π através dos tempos)

Junaid Mubeen

Dediquei parte das minhas férias a ler o Papiro de Rhind. Foi uma leitura fascinante. Datado de 1650 a.C. (e atualmente exposto no Museu Britânico), este pergaminho de cinco metros de comprimento resume o rico legado matemático do Egito. As pirâmides de Gizé erguem-se, grandiosas, como testemunho da incrível habilidade e conhecimento dos egípcios na realização de medições. O Papiro de Rhind reúne amplas contribuições à aritmética e à geometria. Inclui o sistema de contagem decimal bastante característico dos egípcios e uma coleção de problemas que demonstram um talento extraordinário no estudo das frações.

O papiro também documenta um método primitivo, mas elegante, de estimar o valor de π. Mais precisamente, os egípcios calculavam a área aproximada de um círculo de diâmetro 9 cortando, primeiro, um nono de seu diâmetro; depois, construindo um quadrado com lados de comprimento equivalentes a essa medida; e, finalmente, calculando a área do quadrado.

Uma vez que a área real do círculo é π*(9/2)² e a área do quadrado é 8², somos levados a estimar π como 256/81 – em torno de 3,16, com margem de 1% do seu valor real. Nada mal para 1650 a.C.

Sabemos, desde tempos imemoriais, que π é uma constante – ou seja, a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo é sempre a mesma, independentemente de seu tamanho. Tanto o botão da sua camisa quanto o equador da Terra (“entregue-se” por um momento, assumindo que ambos são círculos perfeitos) terão exatamente a mesma proporção.

Por muito tempo, suspeitou-se que π era um número irracional, de modo que sua expansão decimal nunca terminaria ou se repetiria (isto foi finalmente comprovado no século XVIII). Determinar π tem sido, desde então, uma tarefa perseguida com paixão por cada grande civilização. Arquimedes conseguiu um salto quântico neste processo, usando um método de repetição envolvendo polígonos de diversos tamanhos. Os chineses alcançaram o π de sete casas decimais no século XV. Srinivasa Ramanujan – aquele que conhecia o infinito (e π, ao que parece) – abriu caminhos no início do século XX com representações surpreendentemente fantásticas de π em termos de somas infinitas. Os métodos computacionais modernos talvez tenham tirado a emoção da busca, atingindo 22 trilhões de dígitos (ainda assim, estão apenas algumas casas decimais mais longe do que os chineses estavam).

Este é um mero vislumbre do eterno fascínio da humanidade por π. Mais do que um número, ele atravessa vários campos – aritmética, geometria, álgebra e muito mais – desconcertando e encantando matemáticos de todas as áreas até hoje.

Agora, considere a forma resumida de π que se ensina na escola. O π é, normalmente, apresentado aos alunos como a razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro. Não há nenhuma reflexão sobre a constância de π; não há intriga. Não se espera que os alunos lidem com as intrincadas provas geométricas desta propriedade, mas ensina-se como provar esta definição ao explorar diferentes dimensões de círculos. O problema da corda ao redor da terra é maravilhoso, já que a constância de π tem sido aceita criticamente.

Em vez disso, os alunos são levados ao trabalho pesado de calcular áreas, perímetros, comprimentos de arco, volumes e etc – ordenando fórmulas prescritas para π que não compreendem ou com as quais não se importam. Os mais animados irão guardar os primeiros 10 dígitos de π na memória; os autoproclamados “gênios” irão mais longe. Eles poderão se empolgar com a expansão decimal infinita de π, sem nunca refletir sobre como números irracionais tornam fútil a memorização de dígitos. Eles talvez passem a celebrar o Dia do Pi, sem perceber a ironia de comemorar esta joia matemática, reduzindo-a a uma forma aproximada de duas decimais.

Esta é a confusão que se segue quando a matemática é divorciada de sua história. Estudamos história para entender como chegamos ao presente. Examinamos a causa e efeito dos comportamentos humanos passados e estudamos contrafactuais para entender o que poderia ter sido. É assim que progredimos como espécie; reconhecemos que nossa trajetória histórica é uma contingência. Não aceitamos nosso estado atual como imutável.

Não deveria ser diferente com aspirantes a matemático. Os alunos precisam entender que as ideias matemáticas não “nascem” simplesmente. Elas se desenvolvem gradualmente à medida que os seres humanos exploram e fazem perguntas, muitas vezes com imensas dificuldades, recompensas e surpresas (é realmente óbvio que π seja constante?). O processo de descoberta matemática é confuso e incerto, mesmo que o resultado final pareça claro.

O que nós hoje entendemos sobre π só se colocou de pé sobre os ombros de gigantes matemáticos do passado. Eram todos atores na busca eterna da humanidade por entender a linguagem do universo. A matemática é um convite aberto para que os alunos continuem essa jornada; mas, primeiro, eles devem andar com os sapatos de seus predecessores, porque aí residem nossos mais profundos conhecimentos matemáticos. Não se pode apreciar a terrível beleza de π sem relatar as tentativas passadas de entendê-lo e aproximar-se dele.

O contexto histórico dá à matemática (e aos matemáticos, ouso dizer) uma rica personalidade que, muitas vezes, perde-se em seu estudo formal. Ele revela o lado humano da matemática; a dor e o êxtase de buscar novas fronteiras matemáticas. Evidencia a luta e a perseverança como traços do matemático comum. Rompe a visão binária que muitos estudantes têm da matemática e a substitui por um mundo repleto de descobertas e surpresas.

Nenhum estudo de matemática pode ser considerado completo sem a atenção à sua história.

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Comunicação: como falar de assuntos “espinhosos”

Ou: um guia para a comunicação das mudanças climáticas

Quem trabalha na área de comunicação, especialmente ligada a setores de mobilização social, enfrenta sempre o desafio de aproximar os leitores — já que, na maioria das vezes, o sucesso de uma causa depende da conscientização, ação e pressão populares. Essa pode ser uma tarefa ainda mais difícil se o tema em questão estiver ligado a conceitos científicos ou normalmente discutidos em linguagem técnica — como, por exemplo, as mudanças climáticas. Foi pensando nisso que o Centro de Pesquisas sobre Decisões Ambientais da Universidade de Columbia desenvolveu o guia A Comunicação das Mudanças Climáticas, voltado a todos os interessados em encurtar a distância entre a informação correta e seu público. A publicação reúne dicas importantes que, para além do setor ambiental, podem ser utilizadas como base de toda boa estratégia de comunicação.

Veja um resumo de algumas delas:

  • Conheça sua audiência: este requisito é fundamental para comunicar qualquer coisa — e se torna ainda mais estratégico ao tratar de temas de amplo alcance como a mudança do clima. Ao ter contato com informações complexas, as pessoas costumam recorrer a modelos mentais pré-determinados que as auxiliem a definir riscos, ações e comportamentos. Ao mesmo tempo, tendem a procurar informações que confirmem esses modelos. Procure, então, descobrir quais equívocos o público traz em seus modelos mentais sobre o assunto e substitua-os por fatos novos, atualizados.
  • Conquiste a atenção do público: as pessoas se sentem mais motivadas quando seus objetivos coincidem com seu perfil pessoal. Prepare conteúdo identificado com as subculturas de cada grupo (crenças, etnia, classe, idade, gênero, profissão, etc.), destacando o papel determinante que cada um exerce ao se mobilizar para o tema.
  • Transforme informações científicas em experiência concreta: psicologicamente, riscos distantes não disparam o mesmo alarme que riscos imediatos. Ao mesmo tempo, imagens vívidas, metáforas, relatos pessoais, analogias com o mundo real e comparações concretas ajudam a trazer o tema para perto das pessoas. Ao falar sobre mobilização, reforce a ideia de que cada ação imediata trará grandes ganhos no futuro. E, quando for necessário usar termos científicos, procure contextualizá-los e explicá-los.
  • Evite apelo emocional excessivo: Discursos inflamados ou repetitivos, muitas vezes, podem produzir efeito contrário ao pretendido, aumentando a dúvida ou a incredulidade e “anestesiando” a audiência em relação ao assunto. Dessa forma, seja objetivo em relação a dados: ajude o público a entender os graus de certeza ou incerteza de cada cenário. Em reuniões presenciais, deixe as pessoas à vontade para discutir e tirar dúvidas.
  • Incentive a mobilização pela mudança de hábitos: quando se trata de ações cotidianas, as pessoas muitas vezes adotam ações isoladas sem observar o quadro geral de seus hábitos (por exemplo, trocar as lâmpadas por opções de baixo consumo, mas não atentar para processos possíveis de reuso da água ou de alimentos). Ou muitas vezes seguem, sem questionar, as opções padrão da comunidade. Para mudar isso, destaque a importância de uma visão sistêmica de ação e estimule a busca de novas opções que sejam socialmente benéficas, por meio de políticas públicas que envolvam toda a sociedade — por exemplo, o incentivo à produção de energia renovável, o uso de materiais biodegradáveis, a luta pela implantação de coleta seletiva e outros.

A escolha das estratégias corretas de comunicação pode fazer a diferença no alcance de seus projetos. Para conhecer em detalhes as sugestões do guia, baixe a publicação completa neste link!

Com dados de artigo da autora publicado na Agência Jovem de Notícias

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