A educação, o π e as bruxas

É curioso ter, entre os primeiros escritos de um blog sobre comunicação & afins, um texto sobre… matemática. Mas o post publicado na revista Hacker Noon (do qual fiz a tradução abaixo) chamou minha atenção já a partir do título, por resumir um conceito no qual acredito profundamente: a importância da visão sistêmica na educação (e por tabela, na comunicação) para a compreensão do que nos cerca. A tendência a enxergar e interpretar o mundo em “compartimentos estanques” (processos políticos e sociais “separados” do ambiente, leis da física separadas do cotidiano, a saúde da mente isolada da saúde do corpo e assim por diante), reinante deste os tempos da revolução industrial, já mostrou fazer mais mal do que bem à construção de uma sociedade que possa se sustentar. Por isso é importante falar sobre a união de saberes, seja na educação, seja na comunicação ou na vida.

Este é um assunto amplo que renderia mais e mais artigos por aqui. Por hora, segue o texto com alguns grifos meus… e para quem quiser fazer um mergulho ainda mais fundo na relação inseparável entre ciência, organização social e história, recomendo conhecer também a trajetória da filósofa (e matemática) Hipátia, uma das figuras femininas mais importantes da Antiguidade. Sua história é contada no filme Alexandria, que dá o que pensar sobre vários temas – e que tem, como uma de suas mais belas e simbólicas cenas, exatamente uma descoberta científica. Nada mal para uma narrativa “de humanas”. 😉

A Matemática sem história não tem alma

(ou o π através dos tempos)

Junaid Mubeen

Dediquei parte das minhas férias a ler o Papiro de Rhind. Foi uma leitura fascinante. Datado de 1650 a.C. (e atualmente exposto no Museu Britânico), este pergaminho de cinco metros de comprimento resume o rico legado matemático do Egito. As pirâmides de Gizé erguem-se, grandiosas, como testemunho da incrível habilidade e conhecimento dos egípcios na realização de medições. O Papiro de Rhind reúne amplas contribuições à aritmética e à geometria. Inclui o sistema de contagem decimal bastante característico dos egípcios e uma coleção de problemas que demonstram um talento extraordinário no estudo das frações.

O papiro também documenta um método primitivo, mas elegante, de estimar o valor de π. Mais precisamente, os egípcios calculavam a área aproximada de um círculo de diâmetro 9 cortando, primeiro, um nono de seu diâmetro; depois, construindo um quadrado com lados de comprimento equivalentes a essa medida; e, finalmente, calculando a área do quadrado.

Uma vez que a área real do círculo é π*(9/2)² e a área do quadrado é 8², somos levados a estimar π como 256/81 – em torno de 3,16, com margem de 1% do seu valor real. Nada mal para 1650 a.C.

Sabemos, desde tempos imemoriais, que π é uma constante – ou seja, a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo é sempre a mesma, independentemente de seu tamanho. Tanto o botão da sua camisa quanto o equador da Terra (“entregue-se” por um momento, assumindo que ambos são círculos perfeitos) terão exatamente a mesma proporção.

Por muito tempo, suspeitou-se que π era um número irracional, de modo que sua expansão decimal nunca terminaria ou se repetiria (isto foi finalmente comprovado no século XVIII). Determinar π tem sido, desde então, uma tarefa perseguida com paixão por cada grande civilização. Arquimedes conseguiu um salto quântico neste processo, usando um método de repetição envolvendo polígonos de diversos tamanhos. Os chineses alcançaram o π de sete casas decimais no século XV. Srinivasa Ramanujan – aquele que conhecia o infinito (e π, ao que parece) – abriu caminhos no início do século XX com representações surpreendentemente fantásticas de π em termos de somas infinitas. Os métodos computacionais modernos talvez tenham tirado a emoção da busca, atingindo 22 trilhões de dígitos (ainda assim, estão apenas algumas casas decimais mais longe do que os chineses estavam).

Este é um mero vislumbre do eterno fascínio da humanidade por π. Mais do que um número, ele atravessa vários campos – aritmética, geometria, álgebra e muito mais – desconcertando e encantando matemáticos de todas as áreas até hoje.

Agora, considere a forma resumida de π que se ensina na escola. O π é, normalmente, apresentado aos alunos como a razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro. Não há nenhuma reflexão sobre a constância de π; não há intriga. Não se espera que os alunos lidem com as intrincadas provas geométricas desta propriedade, mas ensina-se como provar esta definição ao explorar diferentes dimensões de círculos. O problema da corda ao redor da terra é maravilhoso, já que a constância de π tem sido aceita criticamente.

Em vez disso, os alunos são levados ao trabalho pesado de calcular áreas, perímetros, comprimentos de arco, volumes e etc – ordenando fórmulas prescritas para π que não compreendem ou com as quais não se importam. Os mais animados irão guardar os primeiros 10 dígitos de π na memória; os autoproclamados “gênios” irão mais longe. Eles poderão se empolgar com a expansão decimal infinita de π, sem nunca refletir sobre como números irracionais tornam fútil a memorização de dígitos. Eles talvez passem a celebrar o Dia do Pi, sem perceber a ironia de comemorar esta joia matemática, reduzindo-a a uma forma aproximada de duas decimais.

Esta é a confusão que se segue quando a matemática é divorciada de sua história. Estudamos história para entender como chegamos ao presente. Examinamos a causa e efeito dos comportamentos humanos passados e estudamos contrafactuais para entender o que poderia ter sido. É assim que progredimos como espécie; reconhecemos que nossa trajetória histórica é uma contingência. Não aceitamos nosso estado atual como imutável.

Não deveria ser diferente com aspirantes a matemático. Os alunos precisam entender que as ideias matemáticas não “nascem” simplesmente. Elas se desenvolvem gradualmente à medida que os seres humanos exploram e fazem perguntas, muitas vezes com imensas dificuldades, recompensas e surpresas (é realmente óbvio que π seja constante?). O processo de descoberta matemática é confuso e incerto, mesmo que o resultado final pareça claro.

O que nós hoje entendemos sobre π só se colocou de pé sobre os ombros de gigantes matemáticos do passado. Eram todos atores na busca eterna da humanidade por entender a linguagem do universo. A matemática é um convite aberto para que os alunos continuem essa jornada; mas, primeiro, eles devem andar com os sapatos de seus predecessores, porque aí residem nossos mais profundos conhecimentos matemáticos. Não se pode apreciar a terrível beleza de π sem relatar as tentativas passadas de entendê-lo e aproximar-se dele.

O contexto histórico dá à matemática (e aos matemáticos, ouso dizer) uma rica personalidade que, muitas vezes, perde-se em seu estudo formal. Ele revela o lado humano da matemática; a dor e o êxtase de buscar novas fronteiras matemáticas. Evidencia a luta e a perseverança como traços do matemático comum. Rompe a visão binária que muitos estudantes têm da matemática e a substitui por um mundo repleto de descobertas e surpresas.

Nenhum estudo de matemática pode ser considerado completo sem a atenção à sua história.

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